terça-feira, 30 de novembro de 2010

«Forbidden Planet», o olhar apotótipo-diatópico de Fred Wilcox"


"Forbiden Planet", uma desencantada 'apotopia'/'diatopia'/'distopia' remotamente shakespereana sobre a solidão e morte [o suicídio mais ou menos 'ritual'] dos humanistas e a impossibilidade global da felicidade num mundo obsessivamente dominado pela tecnologia e pelos seus usos 'políticos' e militares: um mundo triturador, mecanizado e extensivamente massificado, que se perde irregressivelmente das respectivas raízes antropocêntricas e especificamente humanistas e que acaba simbolicamente no "Paraíso Voltado a Perder", de Altair 4.

Um consistentíssimo trabalho de Walter Pidgeon ['Dr. Morbius', "morbius" de "morte"?...] secundado por Ann Francis e pelo recentemente falecido Leslie Nielsen.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

"Leslie Nielsen, 1926-2010"


É um daqueles actores condenados a um certo estatuto irregressivelmente secundário e menor porque excessivamente pop devido ao tipo de filme a que o seu nome é, a partir de dado momento, definitivamente associado.

No caso de Nielsen, actor canadiano nascido em 1926 e falecido a 28 de Novembro de 2010, o momento foi o ano de 1980, quando foi incluído no elenco de "Airplane", uma farsa baseada no ultra-famoso "Airport", um filme-catástrofe de enorme sucesso internacional realizado por George Seaton e protagonizado por um elenco de velhas estrelas de Hollywood, algumas delas já um pouco decadentes e francamente menos solicitadas [mas ainda capazes de conferir uma certa "respeitabilidade promocional" reconhecível a este tipo de filme] outras nem tanto como Dean Martin, Burt Lencaster, Van Heflin, Maureen Stapleton, Lloyd Nolan ou Jessie Royce-Landis.

Nielsen, que se estreara no cinema, como intérprete, em "Ransom" de Charlie Telfer, de 1955, protagonizaria, pois, a "charge" que Jim Abrahams dirigiu, como disse, em 1980 e, a partir daí, quando o género filme-catástrofe tendia já claramente para o esgotamento e se tornara mesmo já, sob inúmeros aspectos, uma espécie de caricatura involuntária e constante de si próprio, constaria do elenco de diversas paródias incluidas numa espécie de vago "contra-género" ou "trans-género" que incluiria "citações" paródicas, sempre assentes num registo de cómico muito físico e imediato, muito... "extremo", por vezes integrando uma assumida i/lógica de cartoon, do próprio filme-catástrofe mas não só estendendo-se, por exemplo, ao "gore" ou "extreme" ["Scary Movie"] ou à ficção científica ["2001 a Space Travesty"].

No entanto, os começos de Nielsen no cinema haviam sido perfeitamente "sérios", tendo, em minha opinião, atingido o apogeu da sua "primeira carreira", aliás razoavelmente discreta, ao lado de Anne Francis e de Walter Pidgeon, numa espécie de remota releitura espacial d' "A Tempestade" de Shakespeare, o clássico "Forbidden Planet" de Fred Wilcox [de 1956].

A partir daí, a carreira de Nielsen no cinema pareceu, durante vários anos, condenada a uma certa secundaridade e a um anonimato mais ou menos persistente [transferida de forma substancial para a televisão onde interveio em séries na sua época famosas como "Dr. Kildare" com Richard Chamberlain, "The Fugitive" com David Janssen, "Kojak" com Telly Savallas ou "M.A.S.H." com Alan Alda] quando, como disse, em 1980, é subitamente relançada, naquele registo completamente imprevisto para o qual Nielsen parecia estar tudo menos talhado.

A natureza do cómico por que ficará seguramente conhecido das audiências mais modernas---um cómico, como disse, muito físico, sem grandes complexidades técnicas ou intelectuais, caracterizado exactamente ao contrário pelo imediatismo facilmente identificável [e "consumível"] das referências, pela saturação intencional dos vários dispositivos cómicos, pelos excessos histriónicos e pela assumida improbalidade material dos gags apontando claramente para o desenho animado [interpretou mesmo, num filme de 1997, uma personagem directamente originária desse mesmo universo particular, 'Mr. Magoo']---não exigia muito do actor, jogando antes na desconstrução óbvia e extrema dos objectos fílmicos e cultu[r]ais que citava e sobre os quais cada filme ia incidindo mas, também, da própria imagem de galã que Nielsen trazia imediatamente consigo e que começava imediatamente a subverter mal entrava em cena.

Estava já há algum tempo internado com uma pneumonia e faleceu pacificamente, em Fort Lauderdale, na Flórida, enquanto dormia.

domingo, 28 de novembro de 2010

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Incompl./Por rever


Muitas vezes, quando equaciono perante mim próprio a questão do Portugal do futuro---serei, aliás, dos poucos que, entre nós, ainda o fazem---o Portugal a sair do atoleiro para que acabou por atirá-lo o 'intermezzo socrático' [visto---já!---retrospectivamente com o seu inefável cortejo de Helenas Andrés, de Luíses Amados a que se juntam personagens ainda mais dificilmente descritíveis como os Ruis Pereiras e as Anas Jorges, uma espécie de reedição Titanic do hilariante "governo Santana Lopes"]; muitas vezes, dizia, colocado perante a questão de responder à pergunta "Como vai ser o Portugal de daqui a uns meses ou mesmo se calhar até, só umas semanas?" uma imagem há que me persegue e atormenta: a da Itália moderna.

Versão barata da cupidez e das desenfreadas lutas pelo poder na Roma Antiga, "país económica e socialmente polar" onde a base da pirâmide social esteve sempre "a quilómetros" do, por sua vez, persistentemente cúpido, decadente, lascivo e não-raro devasso, topo, não por acaso a retrata Shakespeare no "Júlio César" como uma arena de frias crueldades e traições sem fim onde a dignidade e a consistência ética acabam tragicamente imoladas à vaidade, à ambição pessoal, à traição, à perfídia, à conspiração e aos jogos, às depravadas manobras de umbrosos e túrbidos conjurados.

Não sou historiador e a minha perspectiva, aqui como em todos os outros contextos onde questões desta natureza venham à baila, é sempre naturalmente distinta da do historiador.

Nem sequer estou particular [nem sequer estou realmente!] interessado em averiguar da consistência e da veracidade estritamente factuais, objectivas, da imagem que Shakespeare [re?] produz da Roma cesária e dos usos retóricos e dramáticos que dela, no clássico referido, faz.

O que está, para mim, realmente, em causa aqui é discorrer em termos muito mais filosóficos e antropológicos, sobre uma espécie de persistente 'cultura da incultura' e das múltiplas formas de abjecção a que ela dá origem [sob muitos aspectos Roma, a própria Roma, é já uma espécie de Grécia Antiga re/vista num espelho embaciado e nem sempre muito limpo...] que parecem obstinar-se em viajar continuamente pelo espaço global da latinidade nesta achando, de forma mais ou menos cíclica, metronómica até, rostos e retóricas sempre disponíveis para reencarná-la.

O que está aqui em causa é, diria eu, sobretudo, um tipo de imagem tópica persistente, abstracta mas sempre impendentemente concretizável, de salvador-ovelheiro-tutor-mentor de povos iletrados, misto de carcereiro mental palavroso e gabiru e Senhora de Fátima, fantasma obsessivo de latinidade naturalmente subdesenvolvida, truculenta, falstaffiana [no fundo, Berlusconni é um Falstaff com meninas em poses dúbias a toda a volta, um Mussolini com um montão de DVDs piratas e cassettes de filmes da Cicciolina sempre à mão]; um Godot carnal e incrivelmente carnívoro que se pinta de branco para se parecer com os anjos---os quais, todavia, para ele terão sempre a forma e a aparência finais de um salsichão com um halo de neon na extremidade mais próxima e mais facilmente comestível...

Muitas vezes, dizia, então, tudo isto, este bric-à-brac antropológico e mental onde cabem, mais Mussolini, menos Mussolini, Salazares, Cavacos, Berlusconis, Mários e Primários, montes de bosta a fingir que são prédios nas berças, rústicos com nomes de gente famosa a-ver-se-pega [e, às vezes, pega mesmo!] chicos-espertos com cursos feitos a martelo como o vinho, camisolas do Ronaldo, encíclicas papais e cardeais-patriarcas bem-falantes cheios de vontade de fazerem da indigência intelectual pura e nada simples "papers académicos" legítimos mas, paradoxalmente, também suecas comestíveis disfarçadas de Julietas suburbanóides e meninas por conta que parecem anjinhos adoptados por gente verdadeira, "antropófagos sociais" maloios e arrivistas, inimaginavelmente vorazes e sucateiros de todo o género---até de ideias e de consciências em segunda mão; D. Juans de pastelaria de bairro e penteado de herói de telenovela da TVI; Júlias Dinheiros e criadas de servir com nome de santuário rasca pagas a peso de um oiro que não há; muitas vezes, dizia, quando penso no Portugal "que aí vem", penso nesta espécie de... "resíduo sólido" global e persistente que, ao deslocarmo-nos como gente na História, arrastamos penosamente atrás de nós como uma espécie de rabo cultu[r]al indecorosamente óbvio, de identidade prévia e decisiva ou até de bicho de estimação mental e cultu[r]al para o qual não houvesse instituição zoófila nem canil para onde pudéssemos remetê-lo no improvável caso em que aprendêssemos finalmente a viver sem ele e até, no limite, como já nos habituámos, para ele.

...E invariavelmente concluo: vivemos, há muito [desde sempre?] no fundo de uma agnocracia triunfal com sólidas raízes na História imóvel e completamente circular onde vamos buscar inspiração para continuar a fingir que existimos realmente e que nos habituámos a conceber como ums espécie de destino colectivo que deixámos já, há muito, de saber distinguir de nós mesmos.

Nós com os nossos diversos Salazares [que nos chegam sempre numa espécie de escala móvel que vai mudando com os tempos: ora maiores, ora mais pequeninos, conforme as modas e as necessidades circunstanciais de quem há muito "comprou a História" para seu uso pessoal]; os italianos com os seus Prodis, os seus Craxis, os seus Andreottis, os seus Berlusconis ou Patusconis, os seus Césares de pacotilha, os seus Berluschinis e Mussolonis consumidores de virgens e dignidades várias; nós com os "nossos" próprios pesadelos existenciais e cívicos colectivos na forma de meia dúzia de pseudo-homens e mulheres públicos acabados de sair de uma qualquer "loja dos chineses institucional ou académica", entretanto fechada por uma ou outra razão invariavelmente menos clara e menos louvável; a França, sempre às voltas com um escândalo de espionagem e uma "chauvinice" quaisquer, com os seus Casanovas de "marché aux puces" e as suas "escort girls" de capa de revista tonta que, num país que o é também de muitas vinhas e vinhateiros, substitui, com vantagem, as ideias que há muito deixou de haver.

Ora, o mal não é, ao contrário daquilo que alguns pensam, de partidos: a Itália renovou ainda não há muito o seu próprio "parque" nessa matéria e pouco tempo depois estava exactamente na mesma ou um bocadinho pior...

Em França os partidos políticos são sempre, em consequência do próprio modelo institucional de governação, uma espécie de democraticamente vistoso alibi e, no fundo, aparatosa inutilidade [senão mesmo, decorativa escrescência] que fica sempre bem ostentar a toda a volta do poder mas, como acontece, entre nós, nessa extraordinária paródia de regime e colónia penal perdida algures numa prega remota do Tempo que é a Madeira a uma distância "segura" desse mesmo poder.

O problema não são, pois, os partidos mas o "uso" que os sistemas políticos fazem deles, servindo-se, para tanto, de quantidades ou níveis diferentes de intervenção e participação civil na vida política das sociedades onde eles se inscrevem e actuam.

O problema é o modo como os cidadãos, a sociedade dita civil no seu todo [não] participa na vida da cidade---o modo como institucionalmente os mecanismos absolutamente básicos e essenciais de vigilância e controlo democrático [não] operam, chamem-se os partidos "Casa das Liberdades" ou tenham eles outra [bigoduda e mais ou menos fantasiosa, carnavalesca] designação qualquer.

O específico democrático---aquilo que permite, em última análise, distinguir sempre uma democracia mais ou menos genuína de um daqueles sistemas de "autocracia plebiscitária" que passam, no Ocidente comummente por tal---consiste no seguinte que não me canso de repetir: nas democracias, aquilo que a sociedade no seu todo cede aos respectivos poderes poderes executivos é sempre e apenas o exercício instrumental do poder, nunca o próprio poder como tal.

A cedência deste último como tal é própria dos regimes autocráticos onde o exercício do poder e o próprio poder se confundem a ponto de na prática constituirem entidades inter-indissociáveis e virtualmente inextricáveis.

Ora, para que seja apenas o exercício, não o poder, que é contratado socialmente entre a sociedade e a respectiva liderança democrática torna-se, como também tenho vezes sem conta repetido, absolutamente imprescindível que previamente à eleição desta exista um caderno de encargos económicos, sociais e políticos---um programa preciso de acção política---pelo qual os eleitos sejam institucionalmente forçados a responder em qualquer altura, sendo formalmente penalizados por tribunais de fiscalização política caso incumpram o respectivo mandato omitindo partes ou a totalidade dele sem razão demonstrável e legítima ou, pelo contrário, excedendo-o, dele infundadamente exorbitando.

Um governo democrático não é um proprietário ou um comissionista disfarçado da vontade da sociedade nem sequer um mediador com poderes para substituir a sua própria à vontade civil.

Qualquer desconformidade entre o contrato social subscrito e o seu in/cumprimento em legislatura, no caso do governo, deve sempre ser objecto de análise por parte da mesma instância fiscalizadora com poderes tribunalícios onde cada candidato, individual ou colectivo, devesse, também, aliás, ser obrigado a depor previamente à consecução do respectivo processo eleitoral uma cópia do programa de acção .

Numa democracia os eleitos não respondem por factos consumados e, em qualquer caso, não respondem por elers ou por outros quaisquer simplesmente através da possibilidade de não serem reeleitos.

Inclusive se os factos em causa forem bons o próprio modo como a eles se chegou deixa a porta aberta a que o não sejam e viola um princípio básico da democracia que é o 'princípio da confiança fundamentada' entre eleitores e eleitos.

Eu diria que em democracia a boa governação tem de ser sempre objectivamente "mensurável"---e obviamente só pode sê-lo se houver um padrão estável e, ao mesmo tempo, fiável pelo qual aferir objectivamente o respectivo in/cumprimento: esse padrão é, como não resulta menos evidente, o próprio programa previamente depositado na instância fiscalizadora à qual compete avaliar e formalmente julgar da consonância material entre o programa e a realidade.

Só há Berlusconis e quejandos [cito o seu "exemplo" porque é, de facto, um caso, sob muitos aspectos extremo de "degenerescência" e até de "patologia" políticas mas poderia, com alterações de circunstância citar o de um Blair, em Inglaterra, uma das nmais sombrias e desprezíveis figuras da pós-modernidade cívica, ético-política, civilizacional, etc. de que há memória; um indivíduo que devia ao que tudo indica estar hoje a responder pela monstruosa mistificação, pelo verdadeiro crime que foi a invasão do Iraque e tantos outros, inclusive... "prata da casa"...]; só há Berlusconis, Aznares, Barrosos e outros que tais porque a democracia não se vigia, não se defende e não se... "dá ao respeito".

Não me restam muitas dúvidas de que num país mental e político como este a que chamamos [alguns, porém, com deliberado sarcasmo!] "nosso", até um F.M.I. alibi de inomináveis cobardes políticos santo padroeiro da irresponsabilidade assumida como política de estado terá de fatalmente aparecer, mais cedo ou mais tarde [quem sabe se em cima de uma oliveira...] como um salvador de nós mesmos, uma avatar do Pai ou da Paternidade Mosaica que nunca quisemos [nem soubemos!] deixar de ter e de que necessitamos desesperadamente para nos proteger, insisto, acima de tudo, de nós próprios.

Somos, assim, antes de mais, o nosso próprio medo de existir como alguém lhe chamou feito vocação---uma "gente singular" para quem um passado mítico dá sempre o melhor dos futuros e o mais empolgante dos mitos.

A começar por essa extraordinária ideia em volta da qual construímos toda uma identidade colectiva; esse persistente "andaime da existência" de que nem por sombras admitimos prescindir com medo que a identidade que imaginamos possuir possa desabar se a ele renunciarmos e que é a de que estamos, de facto, na História e existimos realmente...


[Na imagem: "Fátima, Isso Come-se?" colagem sobre papel impresso de Carlos Machado Acabado]

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

"DEFINITIVAMENTE 'Não' À Violência [Também...] De Género!"


Teve a Amiga São a oportuna inciativa de evocar, no seu blogue, o Dia Contra a Violência de Género que quase passou despercebido num dia em que uma Greve Geral excepcionalmente mobilizadora concentrou as atenções da maioria dos portugueses.

E, no entanto, no caso da violência de género, esse assassino silencioso [e silenciado---até culturalmente silenciado!] que começa a alcançar foros de verdadeiro 'genocídio social e existencial', encontramo-nos como sociedade perante um dos mais tenebrosos e repugnantes "esqueletos" no nosso armário colectivo das vilezas mentais e cultu[r]ais.

Parabéns à São que teve a lucidez suficiente para no-lo lembrar a todos---e bem necessitados estamos todos---a começar na sociedade dita civil e a acabar na polícia e nos tribunais!


Foto ilustrativa extraída com a devida vénia de jpn-dot-icicom-dot-up-dot-pt]

"Poooof!"


Foram, assim, ao ar as ilusões de que o Benfica estaria ainda vivo e de que Jorge Jesus era "homem para ele": não está e não é!
Ponto final!
Venha outro!

Quem?
Olhem: tirem à sorte!...

"Ainda a Greve Geral de Dia 24"


Na sequência daquilo que digo imediatamente a seguir sobre a greve de hoje, acrescentaria ainda o seguinte, envolvendo a questão importantíssima das consequências mais ou menos previsíveis desta Greve Geral.

Uma dessas consequências é, como é óbvio, que o poder político vai inevitavelmente perceber que se lhe está a acabar a margem de manobra para continuar em segurança, em termos que já nem sequer são políticos mas imediatamente sociais, a descarregar, como até aqui tem feito, sobre o conjunto da sociedade civil as suas "políticas" de recapitalização e, em termos mais gerais, de refuncionalização global do sistema económico-financeiro e que daqui em diante vai ter de ver com muito cuidado o sítio onde põe os pés antes de avançar com novas 'medidas' [ou até com a implementação das que já estão aprovadas...] porque pode haver minas e... armadilhas onde, para ele, durante muito tempo houve terreno razoavelmente seguro e genericamente firme.

Mas essa pode ser uma "vitória de Pirro" para as forças progressistas no exacto sentido em que vai tornar na prática dificilmente resistível a tentação de encontrar fora do País, numa entidade suficientemente distante e... "eleitoralmente anónima" que permita aplicar medidas daquele tipo que atrás refiro e que todos conhecemos ou adivinhamos quais possam ser sem pôr directamente em causa projectos eleitorais internos dos impropriamente chamados "partidos de poder" [do poder são todos, desde que o eleitorado assim o entenda!] cujas clientelas começam, a partir de agora, a ter cada vez mais sérios e fundados motivos para recear ver comprometidos.

O que isto quer dizer é que, se já tudo indica ser exactamente para aí, i.e. para "discretas" sondagens e... oblíquias auscultações à opinião que apontam certas especulações e reflexões mais ou menos directamente "sopradas" das esferas do poder em volta de uma futura intervenção do F.M.I. em Portugal, o medo que vai previsivelmente instalar-se, a a partir de agora, no seio desse mesmo poder [actual ou outro qualquer outro que se lhe siga e que, aliás, todos estamos fartos de saber qual é!...] apenas pode encorajar a essa "saída airosa" que para ele, poder, representa a entrega do odioso da "gestão" da "crise", nos moldes exactos em que ele pretende que ela seja feita, a forças---pelo menos imediatamente---inatingíveis pela indignação e pela ira populares, agora inequivocamente expressas.

Pode, pois, a Greve Geral ser uma "vitória de Pirro", como atrás dizia, se os sindicatos e as forças partidárias que apoiaram e enquadraram esta manifestação clara de revolta social não quiserem ou não souberem utilizar, como tantas vezes tenho preconizado, a revolta em causa como ponto de partida para formas estáveis, realmente consistentes de organização popular que permitam criar na sociedade portuguesa realmente representativos interlocutores do poder político, capazes de levarem até ele, em tempo real, o sentimento e muito especificamente a vontade da base social da sociedade portuguesa, até aqui imolada a projectos de recapitalização e refuncionalização do sistema completamente desproporcionados, absolutamente leoninos, economicamente devastadores e socialmente de todo insustentáveis.

Até porque, como não me canso, de igual modo, de repetir, em Portugal existe o precendente recente do movimento das comissões [de moradores, de utentes dos serviços públicos, de inquilinos, etc.] e do movimento cooperativo que pode fornecer o modelo ideal para concretizar o desiderato em causa.

Não se trata---é preciso dizê-lo com toda a clareza!---nem de "sovietizar" a sociedade portuguesa [as "comissões" não são sovietes!] nem de construir pontos ou mesmo núcleos activos de anti-poder que ponham, directa ou indirectamente em causa o ordenamento jurídico-político nacional.

Exactamente porque as comissões não são sedes de um poder concorrente do poder constitucionalmente reconhecido, elas não concorrem com este antes o mantêem saudavelmente informado, volto a dizer: em tempo real, da vontade popular, sendo que foi justamente para representar e dar consecussão a esta que os poderes democráticos e especificamente os que se auto-designam de "representativos" foram historicamente criados e são regularmente eleitos.

Agora, o que não se pode, com esta Greve Geral é deixar que ela e as camadas sociais que nela se vêem representadas sejam usadas como instrumento e pretexto para introduzir em Portugal a tutela do F.M.I. com o propósito de encontrar soluções expedientes e expeditas para a pusilinamididade dos poderes internos, demasiado preocupados com o "report" eleitoral das medidas que querem [mas temem!] assumir.

Até porque, do meu ponto de vista, a solução dos males não está [longe disso!] no agravamento ou em qualquer forma de na intensificação das medidas já em vigor mas exactamente ao invés na renegociação e na redistribuição equitativa do ónus destas isto é, tendo em vista como elemento determinante para se acharem "salvadores" para o sistema por ela afectado a responsabilidade de cada classe e/ou sector da sociedade portuguesa no desencadear da própria situação de "crise".

terça-feira, 23 de novembro de 2010

"Sobre a Greve Geral de dia 24"


Calcula a imprensa de hoje em cerca de duzentos e oitenta milhões de euros o que "a economia" portuguesa perde se cinquenta por cento da população laboral nacional aderir à Greve Geral de amanhã.

Não interessam aqui muito nem as cifras exactas nem os cálculos feitos para obtê-as.

A mim, pelo menos.

Aquilo que, a mim, pessoalmente me interessa é:

Primeiro, que uma greve, geral ou não, só interessa se constituir o início, nunca o fim específico, de um processo.

Ou seja: entendida como um objectivo em si [e é, no fundo, sempre, de um modo ou de outro, nessa condição terminal ou ciclicamente terminal que as greves e até as manifestações de rua são entendidas numa 'sociedade cívica e política' sem uma cultura de intervenção e de organização democrática e popular minimamente estabelecida e consistente como a nossa]; entendida, pois, como fim, dizia, as greves acabam sempre, em última análise, por resultar benéficas para o sistema na medida em que operam como um "letting out of steam" e tendem a criar nas massas uma falsa [e perversíssima!] noção de poder que, todavia, se esgota naturalmente em si mesmo, do processo não resultando, a prazo, qualquer alteração efectiva da realidade económica e política em si mesma e como tal.

No plano imediato isso é, sem duvida, muito claro.

É evidente que para o poder económico-político vigente é até util conhecer [e quantificar!] um certo sentir geral das massas a fim de gerir, ajustando-os no plano mais ou menos mediato, os mecanismos de alternância do poder por meio dos quais este é, em geral, mantido nas sociedades onde o modelo de democapitalismo vigora.

Mas essa está, como facilmente se compreende, muito longe de constituir uma vantagem estratégica para o conjunto da sociedade sendo-o, isso sim, pelo que acabo de referir, ao contrário, para o poder económico e político seu adversário na partilha social e política das formas de poder real.

Não me restam, por tudo isso, muitas dúvidas de que qualquer greve só pode ter efeitos reais do ponto de vista de quem a faz se for política.

Hoje mais do que nunca, com efeito, tendo presente o agudizar drástico da crise persistente interna, global, do modelo, a única solução admissivelmente eficaz dos problemas económicos [eu diria mesmo: do problema económico!] é política.

Não faz hoje, já qualquer sentido [e considero muito sinceramente que era nisto que o sindicalismo contemporâneo devia nuclearmente reflectir] lutar por, exemplo, por aumentos salariais quando o problema estrutural resulta da própria natureza específica de uma máquina económica e política [económico-política] que deixou de "saber empregar", i.e. que "mutou" des/estruturalmente o seu próprio paradigma operativo e operacional básico, primário, trocando o recurso tradicional, pré-tecnológico ou sobretudo técnico, ao capital variável pelo recurso natural, intensivo e extensivo, ao capital constante.

Ou seja: em resultado do modo particular, tópico, "significado", volto a dizer: des/estrutural, como o capitalismo tecnológico pós-industrial integrou em si historicamente o Conhecimento [como uma propriedade privada e um proto- ou um pré-capital essencial, uma matéria-prima indispensável nos mecanismos de re/produção contínua do mesmo, as "crises" de hoje, quando se trata de emprego, são cada vez menos conjunturais e cada vez mais estruturais e ínsitas ao modelo, não se dissociando nem distinguindo tendencial ou realmente já dos seus padrões normais de funcionamento.

Isto é, do ponto de vista dos detentores do capital, do capital constante como do capital variável, são exactamente níveis altos de desactivação deste último, do capital variável, por troca com outros inversamente proporcionais da valência constante aquilo que o sistema procura como, chamemos-lhe 'objectivo funcional' ou 'estratégico' muito claro.

Não se pode, com efeito, aplicar à máquina produtiva uma componente cada vez mais determinante de tecnologia na forma de máquinas cada vez mais 'inteligentes' e, depois, dizer que a desactativação consequente do trabalho humano representa um acidente [ou uma mera "crise"] sem expressão e relevância sistémicas específicas muito reconhecíveis e, de qualquer modo, facilmente entendíveis.

Mas é não menos essencial que percebamos as conquêncvias estruturais dessa realidade e o modo como ela altera radicalmente a nossa ideia e os nossos paradigmas de relacionalidade tópica entre o universo laboral, o mundo do trabalho e, por um lado, a sociedade em geral e, por outro, o modo de vida das pessoas, a possibilidade de elas sobreviverem e permanecerem razoavelmente integradas na sociedade, de um modo muito particular.

Dito de outro modo: se o paradigma laboral estreita de forma inevitável e natural nas sociedades com crescentemente elevados índices de integração e absorção tecnológicas, a consequência só pode ser que a sobrevivência material, objectiva, concreta de um número crescente de pessoas seja, a prazo, posta em causa.

Não apenas delas, aliás, mas, como tantas vezes tenho dito, do próprio modelo no seu todo por razões óbvias: sem trabalharem, as pessoas não podem contribuir para a reserva de riqueza pública funcional que permite alimentar continuamente o modelo [com a mediação do Estado dito "social"] e a prazo a tendência inevitável deste é naturalmente tornar-se inviável e bloquear.

Mas esse é um problema do sistema e de quem dele sobretudo beneficia.

Do ponto de vista de quem pretende corrigir as disfunções estruturais do modelo, a questão principal passa, no imediato, por uma redefinição e readequação do paradigma de organização sindical.

É preciso continuar a ir ao encontro dos trabalhadores, obviamente, a fim de enquadrar as suas legítimas aspirações colectivas em matérias que são próprias de quem trabalha para outrem como os salários ou os horários de trabalho mas, dado exactamente que muitos desses trabalhadores ou potenciais trabalhadores, fazem hoje parte de uma crescente categoria ou mesmo classe social que é um autêntico "desproletariado estável e orgânico" do modelo económico---que ele rejeita funcionalmente e a quem paga subsídios mais ou menos regulares para permanecerem fora do mundo da produção continuando, porém, a agir como mercado; mas, assim sendo, dizia, é preciso ir buscar essa nova classe cada vez mais integrada no próprio tecido básico do modelo à sociedade civil para onde ela foi remetida e organizar a defesa dos seus legítimos interesses aí mesmo, nessa sociedade civil como tal.

É essa a base, o pressuposto básico da minha tese de que os futuros sindicatos têm de ser 'sindicatos cidadãos', com muitas características comuns com as "comissões" e até com as cooperativas que o 25 de Abril fugazmente gerou [ou permitiu que se gerassem ou até que ele apenas redescobriu e reactivou] à época, criando um posteriormente gorado embrião do que poderia ter sido a "via original portuguesa" para o socialismo.

É também por isso, porque esa luta extravasa dos modelos tradicionais de sindicalismo permeando clasramente para o da polítioca que eu comecei por dizer que gerais ou não, as greves só podem efectivamente ter interesse e impacto social relevante se forem também cada vez mais assumidamente políticas, operando como plataformas motivantes para a [re] emergência especdífica de novas formas de organização popular civil.

Eu creio que o sector que o sistema ainda vai conseguindo utilizar para produzir---para fazer aquilo que ele chama "produzir" e que é uma maneira... "simpática" e "discreta" de dizer "produzir ou reproduzir contínua e significadamente capital"...---possui um papel essencial que é o de operar como mola real de um movimento que deve forçosamente, repito, alargar-se à sociedade civil para ser profícuo e realmente renovador [será também revolucionário, se as pessoas quiserem que ele o seja...] embora conserve, no essencial ou possa fazê-lo o modelo básico de organização sindical tradicional e típica.

O papel desses trabalhadores efectivos é, insisto, muito importante.

Diz-se hoje [foi por aí que comecei esta reflexão, aliás] que, se a greve que amanhã se realiza, se atingir cinquenta por cvento, da população laboral arrastará consigo um custo de 280 m. de euros.

É fácil [e é... fácil] atirar para cima dos grevistas o ónus de um custo económico que assusta, naturalmente, os empresários e as pessoas mais vulneráveis ao peso bruto dos números independentemente dos possíveis significados ou significações a diversos níveis.

Eu apontaria, desde logo, este: se, efectivamente, uma paragem de metade do contingente laboral nyum único dia possui essa repercusão objectiva, isso só vem demonstrar a importância essencial que as pessoas, os indivíduos, os seres humanos, os cidadãos ainda possuem para o funcionamento normal do sistema.

Mas, se assim é, é preciso tirar daí ilações e a primeira parece-me ser a de que, possuindo os indivíduos essa importância substancial é necessário que eles sejam contemplados com partes igualmente relevantes na opartuilha social não apenas da riqueza produzida no concreto mas, noutro plano mais amplo, mais lato e num certo sentido mais abstracto, dos direitos de natureza económica, social e até política.

Não basta dizer que as pessoas são impoprtantes quando não estão presentes: têm de sê-lo, sempre: quando estão presentes mas, de igual modo, quando, no caso do sistema, enquanto este sistema existir como paradigma económico-político e civilizacional, quando aceitam integrar o crescente contingente do "desproletariado" que ele fatalmente gera.

Resumindo: a greve de amanhã pode, conforme a capacidade das estruturas sindicais que a lideram [como as que oportunisticamente apanharam a "boleia"...] para entenderem o seu tempo e as suas exigências reais no âmbito específico onde operam, representar apenas um sinal um pouco mais avançado de insatisfação e desconforto económico e social que se faz sentir a vários níveis e de diversas formas na sociedade portuguesa ou pode [assim elas tenham capacidade para entender o seu tempo económico, social e político] representar o embrião de um novo sindicalismo e idealnmente, por via dele, a porta aberta para uma nova sociedade, também.


[Na imagem: "Operário" de Portinari, extraído, com a devida vénia, de historianovest-dot-blogspot-dot-com]

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

"Evocando Brevemente Stuart Carvalhais"


Falo nele noutro lugar deste "Diário", a propósito da polícia.

Stuart Carvalhais---um cronista fabuloso de Lisboa e das suas figuras típicas dos anos '40 e '50, da varina ao polícia, da senhora gorda, o equivalente português da "mamma" italiana [à época as senhoras gordas era todas mães de alguém, viviam em vãos de escada esconsos à Graça e vinham à porta quando a gente passava a caminho do liceu não fosse a gente tocar-lhes à campaínha e fugir... Stuart foi um cronista impiedoso delas, daquelas das quais se dizia, em surdina e com malícia muito alfacinha, que o bigode que orgulhosamente lhes coroava o beiço grosso e que parecia erguer-se feroz no ar à nossa passagem pronto a investir era, um dia, religiosamente replicado pelos filhos varões...]; da senhora gorda à menina por conta...

Desconfio que gostava francamente mais destas [ou das fadistas meio tuberculosas e das prostitutas de xaile que também desenhou] do que das tais senhoras gordas com quem ele [como Chaplin que nelas deu corpo à sua evidente e, do ponto de vista estritamente cinematográfico... providencial misoginia...] foi implacável, talvez por lhe lembrarem demasiado uma demasiado cinzenta respeitabilidade ganha a poder de uma baça e fosca normalidade não isenta volta-e-meia de pontiaguda e birrenta truculência...

Foi muito mais do que isso---ainda que eu, à época, o não soubesse: foi um pintor de uma desigualíssima e circunstancial mas sempre interessante, muitas vezes amarga, não-raro sarcástica, mal-disfarçadamente desencantada, melancólica virtude--uma espécie de fatalista ou de "vencido da vida" das formas e da sombra---que compôs, desenhou e coloriu como se tocasse jazz: com as pausas, os hiatos, as descontinuidades mas também, por tudo isso, a espontaneidade e a permanente disponibilidade de quem interpreta um texto musical de jazz.

Alguma das suas melhores figuras são seres marginais, de um modo ou de outro, errantes e nocturnos que, condenados pela intervenção inclemente mas agilíssima, experimentada, às vezes, efemeramente 'oportunista' do pau de fósforo queimado ou do instintivo e naturalmente esclarecido pincel à infixidez e à quase dissolução, parecem, muitas delas, ir a cada momento desintegrar-se ou esfumar-se no ar ou misteriosamente acabados de saír dele---seres estranhos, errantes e mudos com muito do "mal de vivre" e do espírito 'fadista' do lumpen lisboeta [que sempre me levaram a pensar nos tuberculosos e numa certa 'cultura' fatalista da tuberculose que, a dada altura prevaleceu um pouco por toda a Europa e que o Portugal da ditadura resolveu adoptar como atmosfera e "Zeitgeist"] que se comportam sempre ou quase sempre, de um modo ou de outro, como se soubessem que iam morrer e usassem o desenho como uma espécie de ritual final de conformação, de auto-pacificação e de preparação para a morte, muitas vezes [perdida toda a esperança] troçando disfarçada mas sempre um pouco altivamente dela...

domingo, 21 de novembro de 2010

"«Manifestemo-nos Uns Aos Outros!», «La Contamination Au Noir» ou «Se Calhar Sou Mesmo Anarquista Sem Saber»..."


Começo por dizer que não estive fisicamente na manifestação anti-NATO que decorreu recentemente em Lisboa.

Logo-logo, quando soube que tinha havido uma tomada de posição pública contra a imoralidade e o autêntico escândalo que é o envolvimento directo de um governo português [aliás, manifestamente incapaz de... governar-se a si próprio, atafulhado em problemas e que devia, por isso, estar mas era concentrado no combate às grandes questões internas com o desemprego à cabeça de todas elas mas também, de um modo mais lato, da Saúde, da Educação, da Justiça que são as coisas que interessam verdadeiramente às pessoas e que ele, governo, deixou chegar ao estado deplorável a que deixou]; logo que soube, então, dizia, da manifestação de protesto cívico contra o envolvimento do governo numa iniciativa que, para além do seu carácter indesejavelmente agressivo e que [como se isso já não bastasse!] tem custos elevadíssimos, directamente [através dos encargos financeiros que facilmente se imaginam com a iniciativa em si] mas, de igual modo, indirectamente [segundo a imprensa, o secretário-geral da NATO veio, com efeito, a Lisboa "pedir" que fossem repensados os cortes nos diversos orçamentos nacionais eufemisticamente designados por "para a defesa" e patrocinar---ou anunciar...---um qualquer escudo anti-míssil euro-americano no valor de 200 milhões de euros]; logo que soube, pois, que tinha havido uma demonstração de protesto contra tudo isto, não pude esconder a enorme pena que experimentei por não ter sabido dela a tempo de poder participar.

Devo desde já dizer que perdi, porém, parte substancial dessa mesma pena perante as imagens da manifestação em si.

Segundo as televisões, sem que se perceba muito bem, aliás por quê nem com que fundamento legal e democrático, um conjunto de cidadãos foi impedido de se juntar ao protesto.

Terá sido uma iniciativa policial [permanece a questão de saber quem deu à polícia instruções para tal ou quem lhe cometeu o poder objectivo para decidir ela que devia fazê-lo mas permanece, sobretudo, a questão do fundamento in/existente para um comportamento objectivamente discriminatório que, devo dizer, repudio da forma mais veemente e que, além de tudo o mais, me inquieta, com toda a franqueza, profundamente].

Não vi os tais cidadãos [referidos na informação por "anarquistas"] fazer outra coisa que não fosse manifestar o seu legítimo desejo de juntar a sua às vozes que protestavam contra a iniciativa que virou Lisboa e a vida em Lisboa "da cabeça para os pés" e custa e há-de custar aos seus habitantes [como aos das restantes capitais e cidades europeias em geral] "os olhos da cara" em material de guerra quando não---pior ainda---mais cedo ou mais tarde, em vidas humanas.

Mas, sobretudo, não vi [antes pelo contrário e é isso, acima de tudo, o que me leva a, "en fin de partie", lamentar francamente menos o não ter podido estar presente na manifestação] da parte desta, das pessoas que a lideravam, pelo menos, um gesto de repúdio pelo afastamento dos tais "anarquistas", cidadãos como os outros que apenas pretenderiam manifestar-se engrossando o número dos que faziam questão de tornar público o seu repúdio pela iniciativa---tal como não vi a mínima demonstração de solidariedade para com os objectos da discriminação praticada pelas autoridades.

Vi, mesmo, isso sim, um "steward" identificado pelo colete vermelho que vestia e que, entrevistado por uma das televisões presentes, se demarcou formalmente do incidente e, por conseguinte, do grupo de cidadãos excluídos que---não sei se para justificar as contínuas invocações mediáticas do fantasma de um tal "Black Block" que era suposto invadir Portugal e talvez arrasá-lo de vez [mas em cima do qual, curiosamente, ninguém conseguiu pôr a vista...] teve direito a tratamento "especial" por parte das autoridades [o que, de resto, devo dizer, não me surprende nem no fundo chega própriamente a escandalizar-me: incomoda-me, sim, e preocupa-me ainda mais mas apenas isso---e já não é pouco...]

Terá o [até que provem o contrário, discriminatório] "round up" dos "anarquistas" servido, adicionalmente, para ajudar a sustentar, junto da opinião pública de um país martirizado pela crise interna e externa, a compra dos tais blindados que, afinal, parece que não eram mas que, tão-pouco, alguém pode confirmar se são ou não pela simples razão de ninguém lhes ter ainda conseguido pôr [também a eles!] a vista em cima: comprados para a Cimeira, decidiram... não chegar a tempo--- tendo, pois, começado da melhor maneira, como se vê, a demonstração pública da sua oportunidade e da sua, tantas vezes apregoada, utilidade...

Ora, eu não sou propriamente anarquista---pelo menos, no sentido formal e militante do termo.

Li [e tenho na minha biblioteca] Proudhon, Bakunine, Kropotkine cujo pensamento conheço medianamente e ao qual dedico uma atenção que é, de facto, muito mais intelectual e, por várias razões, algumas delas... boas, distanciadamente crítica do que propriamente empática e/ou ideologicamente próxima tout court.

Não gosto, por outro lado, demasiado do poder [ao actual, abomino-o e desprezo-o, pura e simplesmente!]; voto sempre [aliás, responsavelmente!] por princípio, contra o poder instituído, pelo menos no plano nacional--- e educado naquela espécie de meio-francesa cultura que vigorava nos liceus dos anos '50, não morro de amores pela polícia [seguramente não pela imagem tópica extremamente pouco lisongeira do polícia médio desses tempos que Stuart tão bem "retratou" a poder de paus de fósforo queimado...] nem espero demasiado dela embora reconheça, obviamente, a sua necessidade objectiva, concreta, em termos gerais a fim de assegurar a habitabilidade global do mundo violento em que temos hoje, em geral, de sobre/viver.

Apanho as fezes dos meus cães, não deito papéis para o chão, separo o lixo, não assalto casas, não roubo carteiras, tirando moscas e mosquitos nunca matei ninguém---duvido francamente que precisasse da polícia para conduzir a minha existência diária típica dentro de uma certa ordem que me parece minimamente necessária, em termos de tolerabilidade cívica geral.

Respeito-a, exijo-lhe que me respeite e garanta dentro da medida das suas capacidades a minha segurança pessoal e a dos meus [afinal de contas, sou eu quem lhe paga e pago-lhe exactamente para isso] mas, como digo, não espero demasiado dela.

Espero, isso sim, da Cidadania---da sociedade civil [não... servil] dos partidos de Esquerda, dos verdadeiros Sindicatos [não da fantochada que surgiu na sequência de uma tal Carta Aberta que procurou legitimar a acção de sapa levada a cabo no interior do sindicalismo nacional pelo poder que por via de um conjunto de "ficções sindicais" "quisling" logrou infiltrar-se com evidente sucesso, é preciso reconhecer, no mundo do trabalho] e por aí adiante.

Chocou-me por isso ver como dentro da própria manifestação acabaram por surgir... duas: uma "permitida" pela polícia do mesmíssimo poder contra o qual ela tinha sido organizada, a outra, pelos vistos, vá-se lá saber por quê... nem por isso...

Uma excluída e a outra "protegida", ao menos, simbolicamente da contaminação do "lado negro, mais marginal, da força" pela polícia e que aceitou sem aparentemente pestanejar essa espécie de bizarra "protecção" da ordem que estava ali a contestar---o que fez ao demarcar-se implicitamente dos "outros" optando, i.e. fazendo escolhas e opções para mim perfeitamente reconhecíveis, no próprio momento de aceitar não fazê-lo enquanto organização relativamente ao comportamento de quem aos "outros" discriminava.

...E querem saber? Se lá tivesse estado, provavelmente teria saído da manifestação e teria mesmo acabado por vir mais cedo para casa.

Teria sido, aliás, incidindo muito claramente sobre um conjunto preciso de formas perversamente subtis [ou subtilmente perversas] de violência intelectual e cívica, essa a minha própria manifestação anti-abuso e anti-opressão, anti-intolerância, anti-NATO---anti-tirania---pessoal...


[Imagem ilustrativa extraída com a devida vénia de contadoresdehistorias-dot-wordpress-dot-com]

"E se..."


... em vez de mísseis, escudos e guerras, pensássemos mas era nisto?

[Imagem ilustrativa extraída com a devida vénia de dapazpicui-dot-blogspot-dot-com]

"Uma Democracia... Pretextual" [Incompl./por rever]


Regresso aqui, indirectamente embora, ao «tema Nato» [aos tais 200 milhões que custará o escudo anti-não-sei-quê que é suposto proteger-"nos" da ameaça de ninguém-sabe-muito-bem-quem-ou-o-quê-mas-com-o-tempo-alguma-coisa-se-há-de-arranjar...] para sublinhar dois aspectos ligados a toda esta questão do chamado "investimento público" que me preocupa especialmente.

Primeiro aspecto: num universo civilizacional "inversional" não surpreende que tudo, no fundo, se passse como num mundo "ao espelho" de Alice...

A coberto da teoria suposta dinamização neo-keynesiana da economia, gerou-se já no interior dos mecanismos que regulam esta, nos paises capitalistas, uma dinâmica muito própria em que, parodiando a velha máxima existencialista que diz que a "existência precede a essência" do real, o "investimento" precede sempre [e não-raro, por isso mesmo, em resultado precisamente dessa... "precipitação assistémica" do modelo, substitui!] a respectiva utilidade não apenas social mas inclusivamente económica.

Um bom-mau exemplo dá-no-lo, desde logo, a "rede" de auto-estradas portuguesas---muitas delas completamente inúteis e onerando absurdamente o Estado que se disponibilizou, como se sabe, ainda por cima para lhes cobrir os défices estruturais de não/utilização, devido exactamente ao modo completamente disfuncional como foram concebidas, primeiro com o objectivo mais ou menos evidente de dar negócios a grupos ligados ao poder---ilustrando na "perfeição", o papel de "almocreve" ou "broker" de negócios privados atribuído pós-modernamente ao Estado e em segundo lugar, porque completamente desintegradas de um inexistente quadro de planificação minimamente estruturado e ainda menos orgânico do território nacional.

Falei das auto-estradas---uma das "coroas" de muito discutível "glória" do bronco neo-fontismo cavaquista dos anos '80 e '90---mas podia falar de pontes [designadamente da Vasco da Gama que ia "descongestionar" a 25 de Abril e acabou em dispendiosíssima... pista de corridas ilegais nocturnas] ou até estádios de futebol...

Na sua cega obsessão neo-liberalizadora, o sistema, seja enquanto gerido "socialmente" pela sua ala "pê-ésse" seja conduzido a "todo o seu liberal vapor" pela versão "hard core" dita "social-democrata", manifestou sempre um absurdo horror à planificação do próprio modelo ou modelos [?] de "desenvolvimento [??] deixando-o por inteiro entregue às iniciativas avulsas, completamente inorgânicas e desestruturais, das clientelas privadas dos partidos que o foram compondo daí resultando a consolidação de um país cronicamente desequlibrado, de facto, meramente "pretextual", onde muito pouco parece realmente fazer sentido orgânico, estrutural---a começar por uma parte significativa de si próprio: o seu martirizado "hinterland" completamente sacrificado aos novos paradigmas desenvolvimentistas, assentes no abandono rural generalizado e, por conseguinte, na desactivação consistente da máquina produtiva agrícola, politicamente neutralizada e imolada aos mercados dominantes [espanhol, francês] dessa grande empresa multinacional que é a chamada "União Europeia".

Reintegrar a economia; devolvê-la à sua condição natural e "ecológica" de "variável possibilitante" devolvendo à Política o lugar central, de "constante determinacional" no interior do sistema---eis, como tantas vezes tenho repetido, a chave da revolução ptolomaica a conduzir pela Esquerda [onde quer que ela se encontre hoje, o que não é claro...].

Fazer, numa palavra, com que a utilidade das coisas [económicas mas não só] as preceda e não funcione como uma espécie de intruso funcionante ou elusivo fantasma monstruosamente transmutado, por [in?] acção de um modelo absurdo de relacionalidade dinâmica e dialéctica entre a Economia e a Política, de solução em... problema.

Há, com efeito, uma espécie de disparatada "metafísica" e até uma possível "ontologia" do paradigma económico manifestada nessa necessidade... filosófica tantas vezes sentida no interior do sistema ou do modelo, de encontrar uma razão de ser funcional para as coisas [estradas, pontes, fundações...] que, no seu interior, "alguém", com o beneplácito irresponsável do Estado, foi... amontoando, um pouco por toda a parte...

O tal "escudo" anti-não-sei-quantos é apenas um entre esses objectos-cogumelo que a i/lógica inversional do sistema fez nascer no interior dele...

O segundo aspecto prende-se, ainda e sempre, com essa natureza inversional e tem que ver com o modo como o sistema se alimenta.

Eu sempre disse que, no plano do respectivo revestimento politiforme---a tal "democracia funcional" de que com frerquência aqui venho falando---essa naturweza inversional se manifesta no princípio subjacente às eleições que diz que "mais do que eleger um modelo económico e político para a sociedade em geral o que está ali, de factom, em causa é eleger uma sociedade para o modelo económico-político, que já vem [como dizer?] "prontinho de casa" e apenas disponível para ser "politicamente demonstrado" ao ser a esse nível ciclicamente reconfirmado.

Ao ser "eleita" para "ilustrar", concretizando-o pontualmente, o modelo, à sociedade é adicionalmente de forma tácita exigido que o "compre".

De duas maneiras: funcionando no imediato, de modo directo, como mercado mas também num outro plano que envolve os dinheiro de todos na forma de impostos sustentando, custeando, em toda a sua 'extensão operativa' esse mesmo mercado, onde ele apresentar sinais de debilidade ou mesmo ruptura.

É por isso que eu não considero que, do ponto de vista do funcionamento global normal do sistema, seja algo de excepcional que aos dinheiros públicos seja exigido que custeiem, não apenas os delírios anti-míssil [a "folie des grandeurs" tecnológica sempre potencial oui realmente destrutiva] de uma NATO cujo papel histórico corresponde, na realidade, a um "aggiornamento funcional" da velha teoria clausewitzeana de utilizar a guerra---ou, acrescentaria eu, nos nossos 'civilizados' dias sobretudo (embora, não só...) as formas de contenção e estase geopolíticas, as modalidades de "paz induzida" que da ameaça de uso da força resultam---como pressuposto primário de expansão e dominação económico-financeiras "significadas", digamos assim.

Não é excepcional isso do mesmo modo que o não são circunstâncias como aquela que ainda recentemente empurrou uma, até há bem pouco, "exemplar" Irlanda para o precipício econonómico-financeiro estrutural em resultado de a forma de "compra" do sistema pela sociedade em geral ter sido levada ao extremo de incluir o resgate imediato de bancos inteiros com somas que arruinaram a própria sociedade deles [e do modelo de economicização extremamente perverso, socialmente arrasador, porque completamente vazio e improdutivo] vítima.



[Imagem ilustrativa: "To a God Unknown", colagem sobre papel impresso de Carlos Machado Acabado]

sábado, 20 de novembro de 2010

"Von Clausewitz em Lisboa"


Numa altura de profunda crise económica e social---que promete, aliás, novos desenvolvimentos, mais gravosos ainda, logo que o Orçamento recentemente aprovado na A.R. entre em vigor e comece a repercutir, de forma directa e efectiva, no quotidiano dos portugueses, um tal sr. Anders Fogh Rasmussen, secretário-geral de uma tal N.A.T.O. vem a Portugal puxar discretamente as orelhas aos governos que arribam, por sua vez, a Lisboa num clima de generalizada [e compreensível e, sobretudo, desejável!] redução dos respectivos orçamentos militares.

Di-lo o "Público" na edição de hoje pela pena de Ana Fonseca Pereira [cf. "NATO aprova roteiro para a próxima década"] que acrescenta ainda que a personalidade em causa vem, de igual modo, anunciar um sistema dito "de defesa" antimíssil, escreve a articulista, "suficientemente poderoso para cobrir o território europeu da NATO e também os E.U.A.".

Defesa contra quê ou contra quem?

Contra o bom senso e as cada vez mais escassas perspectivas e esperanças das pessoas?

Que espécie de sinistra brincadeira vem a ser esta?!

Sempre segundo o "Público", o que está em causa vai envolver um dispêndio confesso de 200 milhões de euros e passa por "unir as capacidades que [os chamados "aliados"] já detêem [em matéria de arsenal de mísseis] e associá-las aos equipamentos que Washington possui".

Depois da ruinosa iniciativa de recapitalização extensiva e intensiva dos bancos privados com dinheiros públicos, envolvendo à força o conjunto da sociedade na "compra" de um sistema clamorosamente incapaz de auto-financiar-se e de auto-gerir-se e que escapa, além disso e como se isso já não fosse suficientemente intolerável, de forma verdadeiramente indecorosa, às obrigações de natureza "social" que vinculam ainda a generalidade das empresas privadas, a iniciativa da NATO de se reunir na capital daquela que é hoje uma das maisfrágeis e periclitantes economias do chamado universo institucional "europeu" assume foros de escândalo e de autêntica provocação.

A guerra é um "jogo" dispendiosíssimo, um tenebroso exercício e "passatempo" de "meninos ricos globais" sem demasiados escrúpulos de natureza ética e civilizacional: países à beira da falência como Portugal não têm dinheiro para "brincar" às guerras no "pátio" global dessas "crianças institucionais" mimadas e mal-educadas, cinicamente 'neo-clausewitzeanas' que são as grandes potências multinacionais, insensíveis aos múltiplos dramas pessoais e sociais que o presente nos traz, gente para quem a paz, quando existe... só atrapalha porque tem o péssimo hábito de estragar bons negócios...

É preciso que tomemos todos, de uma vez, consciência do verdadeiro papel dos exércitos, hoje como, afinal, em tempos passados e que os mais ingénuos creriam também, já agora completamente... ultra-passados.

Esse papel é, ainda e sempre, por baixo das excelentes e pacíficas intenções abundantemente publicitadas, o que potências assumidamente militaristas como o imperialismo britânico ou o expansionismo prussiano e depois nazi cometeram aos respectivos aparelhos militares, ou seja, o de abrir caminho à força para a pilhagem civil subsequente de matérias-primas e para a fixação forçada de mercados e esferas de influência comercial num conjunto de áreas e lugares do globo onde lhes "cheire" que elas podem existir.

Os pactos militares, por seu turno, mais não são, afinal, do que a institucionalização dessa visão sombriamente "funcional" da guerra [ou da ameaça potencial e latente da guerra] como guarda-avançada "estratégica", no caso desta NATO, do projecto neo-imperial de expansionismo comercial... "civilizado" e "pacífico", conduzido pelos grandes blocos económicos em articulação ou mais ou menos negociado quadro de, porém, implacável concorrência e constante partilha de áreas de influência.

É, pois, essencial, muito em particular num momento especialmente grave como aquele que vivemos hoje que tenhamos consciência das forças que estão, de facto, em causa e se movem na sombra por trás de "momentos históricos" como este que, na realidade, são apenas, por tudo quanto disse, outros tantos passos atrás na marcha, já de si titubeante e sempre extremamente irregular, da civilização e de unm modo mais geral do projecto humanista em direcção ao futuro.

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Um bloco militar "defensivo"?

Defensivo contra quê e contra quem?

Que espécie de sinistra brincadeira vem a ser esta?!

"Eu sou dos que apenas aceitam a ci[u]meira da NATO em sua casa sob veemente e indignado protesto!"


DEIXEM-NOS EM PAZ!

Incompl. [Texto em Construção] [I]


Que relação podem ter entre si factos aparentemente, de facto, tão distintos [e até fisicamente algo distanciados] como a recente visita do líder chinês Hu Jintao a Portugal e uma onda de crimes por esclarecer ocorridos na Suécia, em Malmö em Outubro?

À primeira vista, com efeito, coisa alguma.

Se a estes dois factos juntarmos a presente "crise" global reiterando, agora de modo a incluir esta, a pergunta atrás referida envolvendo a [im?] possível a relação entre todos esses factos mais improvável e absurda parece qualquer resposta que os relacione directa ou indirectamente entre si.

O que aqui me proponho fazer, não sendo em bom rigor "colar" entre si por vínculos de qualquer natureza directa e estrutural todos os factos referidos, é, partindo, porém, de um conjunto de sugestões possíveis de serem vistas como emanando deles ou associando-se, relacionando-se potencialmente, de um modo ou de outro, com eles, tentar avançar com matéria de reflexão histórica e política admissivelmente relevante para todos nós, cidadãos da Europa [e, por enquanto, ainda também da tal "Europa"] ocidental, neste início de milénio.

Antes, porém, gostaria ainda de dizer o seguinte à maneira de enquadramento genérico.

Fortemente marcada pela longa ditadura a que esteve sujeita, a sociedade portuguesa [em especial, essa ilha ou essa estreita faixa de terreno... "intelectual e criticamente cultivável" situada entre a agnosia e a alegre "insouciance" geral; aquilo a que chamo a "sociedade mental e crítica" nacional, os seus intelectuais, alguns dos seus políticos e até, de outro modo menos assumido e menos reflectido, o conjunto da população] ficou, de igual modo, em inúmeros aspectos, marcada por um conjunto de representações de natureza histórica, política, cultu[r]al, etc. que têm origem, enquanto formas mais ou menos precisas de descrever, de representar e, de um modo mais geral, de pensar em abstracto a realidade, exactamente em representações não apenas nascidas ou alimentadas durante a ditadura mas inclusivamente pertencentes a essa mesma ditadura e dela e do mundo ao serviço do qual ela existiu, indissociáveis .

Ou seja: quando, em '74, cai o 'regime', como então se dizia, foi preocupação da Esquerda [dos teóricos, dos que pensavam a Esquerda como dos repectivos, daqueles que a praticavam] que o haviam combatido como puderam ao longo dos quase cinquenta anos que ela durou, lutar agora para que ela não regressasse, não encontrasse condições objectivas e subjectivas para que pudesse regressar.

Simplesmente, como atrás digo, vencida embora nos quartéis e nas ruas, a ditadura teve artes de se sobreviver a si própria---e não apenas nas mentes e nos "sonhos"... endotópicos de uma extrema-direita legal, legalmente acoitada agora, primeiro, já nem digo nos tenebrosos E.L.P.s e M.D.L.Ps mas em partidos à época legais, hoje extintos, como o P.D.C. ou o P.P. [o 'outro', o que se chamou "do Progresso" onde militaram, aliás, indivíduos que hoje regiriam profundamente escandalizados se por outra coisa os referíssemos que não fosse por convictos "democratas" e indefectíveis "homens da liberdade"...] e, depois, no herdeiro natural de todos eles que foi o C.D.S.

Com efeito, também na Esquerda se prolongou uma certa "alma" [ou um certo---como dizer?---"fantasma conceptual e conceptuante"...] da ditadura na forma de um mitário e de uma imagética específicas que, a dado passo, haviam já deixado de corresponder àquilo que a História concreta ia produzindo [aquilo que ela ia tranquilamente produzindo---exactamente porque a Esquerda se mantinha ainda, para muitos efeitos e sob muitos aspectos, absorta, ocupada com a luta contra uma série de "fantasmas conceptuais" vindos do passado, porém, já sem qualquer acção verdadeiramente relevante nas modalidades subsequentes de História.

Até na iconografia parietal da época é fácil perceber como, por exemplo, a imagem do velho capitalista gordo e sinistramente distinto das "pessoas normais" ou a do tenebroso e embuçado agente da polícia secreta que, de uma esquina, meio encoberto por ela, de gola do sobretudo levantada tapando-lhe o resto da funesta face, espreita, deixou já de corresponde às imagens históricas reais.

Se quisernmos ser mais precisos: deixou já de corresponder às respectivas imagens históricas reais.

Francis Ford Coppola, no conjunto dos "Padrinhos", fala de um problema sob muitos aspectos semelhante envolvendo a Mafia cuja evolução para formas extremamente mais sofisticadas e, sobretudo, legais, "integradas" tornou, a dado passo, a luta contra ela particularmente complexa exactamente devido a esse mimetismo funcional e a essa colagem por ela encetados relativamente ao edifício institucional tópico da própria vida das sociedades onde actua.

Aquilo que a Esquerda---alguma Esquerda! Demasiada Esquerda!---portuguesa logo-logo não parece ter entendido é que, apanhado de surpresa pelo caminho seguido pelo que a infra-estrutura económico-financeira do regime imaginava poder ser um 'ajustamento funcional' que, devidamente gerido pelos respectivos "agentes no terreno", lhe iria permitir sobreviver intacta numa "nova História" ou melhor: numa História aparentemente nova; aquilo que dizia, muita Esquerda não foi capaz de apercveber, pelo menos de imediato, foi que ela, essa base infra-estrutural económica e financeira, a breve trecho se havia já recomposto e, tal como sucedeu no caso da Mafia nos filmes de Coppola, teve artes de se "confundir com a própria História", nela adoptando todo um conjunto de condutas exteriormente "canónicas" no plano social e político que pareciam indiciar mudanças genuínas de padrão ou de paradigma estrutural do próprio modo-de-produção.

Assestar armas, a partir de dado momento do processo já revolucionário [ou ainda revolucionário---não é fácil decidir qual a expressão corerecta para o que entre Abril de '74 e Novembro de '75 teve lugar a todos níveis, mentais e físicos, sociedade portuguesa...] contra o velho anedotário económico e político que havia ao longo de décadas servido para identificar o inimigo apenas podia conduzir a que a luta, assim concebida, se limitasse a reproduzir o que o Quixote conduziu contra os proverbiais e clássicos moinhos de vento...

O combate era, de facto, em última análise, na altura, no fundo, um combate contra a própria sociedade como tal; contra o modelo de organização económica, social e política e o "turn of events" [eu chamar-lhe-ia secundário, um verdadeiro "passageiro clandestino" da Revolução] que o 25 de Abril inviamente desencadeou quando, um ano depois de Abril de 74 as forças económicas e políticas que se tinham transferido do frustre marcelismo para um certo expectante limbo, aguardando que a poeira da explosão social assentasse para poderem então retomar a História e voltar a colá-la exactamente no lugar onde a atabalhoada tentativa de "aggiornamento" marcelista tinha ficado; o combate, dizia, tinha de ser já contra essas forças que haviam conseguido, finalmente, recuperar as rédeas da condução de um processo renovador que um poder realmente popular demasiado confuso e fragmentado, demasiado tentativo ainda e internacionalmente demasiado desapoiado para poder opor-lhes com sucesso um projecto seu minimamente organizado e idealmente orgânico não tinha podido conservar.

Quero eu dizer muito claramente o seguinte: é verdade que houve Spínolas---"Spinochets"...---e MDLPs e ELPs e Partidos do Progresso e coisas parecidas; que hou o 28 de Setembro e o 11 de Março; que tinha havido o Chile, Pinochet, Allende, La Moneda, e que havia por toda a América Latina de então os "our sons of bitches" que o imperialismo norte-americano aí havia plantado ou conservado cirurgicamente.

Mas não é, em meu entender, menos verdade que não sendo a Europa exactamente a América Latina---a América... Latrina de Banzers, Somozas e quejandos---o grande perigo para a afirmação de regimes políticos verdadeira e não apenas formal ou funcionalmente democráticos residia na capacidade de adaptação mimética da infra-estrutura económica e financeira das sociedades europeias que há muito já tinham descoberto formas eficientes de evoluir politicamente sem, todavia, se deslocarem um milímetro só que fosse da mesma exacta posição sistémica que haviam ocupado ao longo de décadas, inclusive quando mandaram para a 'superfície da História' os seus agentes mais radicais nas décadas de '20 e '30 do século XX.

Ou seja: sempre me pareceu, com efeito, evidente [a partir até da experiência e das lições de precedentes clássicos de respeitabilização funcional como aquele o regime alemão protagonizou com as suas forças mais conotada e mais activamente "callejeras" quando, de cumplicidade com o grande capital financeiro germânico, decidiu que havia chegado a hora exactamente da "respeitabilidade" e da integração]; sempre me pareceu, com efeito, dizia, que só numa situação extrema envolvendo uma improbabilíssima intervenção directa do universo socialista de então---uma nova "crise dos mísseis" à europeia---a "questão" do poder em Portugal iria resolver-se de forma "moderna" e perfeitamente "civilizada".

É verdade que, como ainda há pouco, revelava Otelo Saraiva de Carvalho, houve, em solo alemão, uma exigência formal, um ultimatum, do presidente dos Estados Unidos ao representante português para que as forças "da ordem" pusessem definitivamente fim ao período de laboratório social, à época já em completa desintegração e em pleno processo de autofagia: era isso "or else..." mas não é menos verdade que a porta ficou completamente aberta para a solução "pacífica" do incómodo do projecto revolucionário [o "or else..." era apenas se as tais forças não lograssem decapitar e neutralizar sozinhas, internamente, aplicando-lhes um mais do que previsível "coup de grâce", um movimento popular na altura já completamente acefalizado e irreversivelmente fragmentado, vivendo de impulsos descontínuos ad hoc e, no fundo, apenas já da própria inércia] como não é menos verdade que os norte-americanos tinham no terreno os seus "homens de mão", os seus agentes "at high places"---não vale a pena recordar as suas identidades, os seus nomes e o seu papel na contenção do que poderia ter sido um verdadeiro processo de refundação nacional mas eram, como depois se comprovaria, gente capaz de ganhar o poder "legalmente" e de assegurar às forças do grande capital nacional e internacional a vitória no assalto final ao poder em Portugal, conservando sempre uma aparência exterior de decoro e até de democraticidade imediata que "é sempre bom" manter nestes casos, como se compreende...

A grande questão, considerado tudo isto; a força das... forças que levaram o grande capital de volta ao poder, agora em versão democrática, não era, numa palavra, se o fascismo voltava: era como voltava ele---que é uma coisa consideravelmente diferente.

Eu sempre pensei e sempre afirmei que, usada com astúcia; usada---para recorrer a um termo e a uma ideia que me são [como dizer?] "critica" ou "semanticamente caras": usada "significadamente"---a democracia pode ser a melhor e mais eficaz das formas de opressão no sentido preciso em que, sabiamernte 'manuseada', ela possui recursos histriónicos bastantes para ser capaz se dissimula em si mesma a ponto de transformar a própria opressão em 'desejo'.

De facto, a democracia é basicamente um espírito e um não-sistema, um meta-sistema, susceptível de ser aplicado, como força de contenção, no fundo, a todos os sistemas, no sentido de humanizá-los e torná-los, em maior ou menor escala, conforme a natureza dos próprios sistemas, permeáveis àquilo que quase... kantianamente, poderíamos designar pela 'razão' humana.

Uma "razão de humanicidade" consolidável num número determinado de instituições de participação e vigilância [ou, no caso dos regimes autoritários, de crítica e denúncia] que visam, sobretudo, frear as derivas autocráticas por que, nio fundo, todos ou quase todos os regimes num momento ou noutro, pelo menos, passam.

No limite, eu diria mesmo, que a democraticidade da democracia se mede incomparavelmente mais por quanto começa por evitar do que propriamente por aquilo que, infundamentada e espontaneamente, ela se propõe 'oferecer'.

Isto, para dizer que as formas modernas de autoritarismo possuem maneiras extremamente sofisticadas de se dissimular na própria democracia---na aparelhagem instituiconal avulsa dela---pervertendo-a exactamente a partir do interior, ou seja, dos lugares da respectiva "anatomia" ou mesmo da respectiva pura... "geometria" onde ela está mais exposta e é, por conseguinte, mais vulnerável.

Assistimos, hoje, com efeito, por toda a parte a uma aplicação cultu[r]al e claro, política da "democracia" que a torna, na realidade, um "autoritarismo plebiscitário" objectual caracterizado, na in/essência pela circunstância politicamente perversíssima de não ser já, na realidade, o exercício sempre fiscalizável do poder mas o próprio poder que é regularmente cedido pelas sociedades aos respectivos agentes políticos cuja acção não responde, como deveria, em tempo real, perante os eleitorados senão que apenas é suposto que o faça a posteriori, por descarte dos próprios agentes e quando aquela acção se converteu já num facto consumado juríco-político e institucional, masis ou menos consolidado---legalmente consolidado.

O que eu digo, pois, é, em síntese, que quando as forças que dominaram a História durante o fascismo regressaram ao poder, o fizeram metamorfoseando-se ou "mutando" funcionalmente e são precisamente essas "mutações funcionais" [que nada alteraram de substantivo nem no modo de produção, nem, como é natural, no paradigma estável, tópico, de relacionalidade económica e social que dele deriva] que têm de ser combatidas e não os anteriores modelos de intervenção histórica e política, formal e assumidamernte autoritários, que o sistema já há muito, por razões de pura funcionalidade e imperativos de mera sobrevivência imediata, deixou de usar.

E é aqui que entronca aquela questão da relação [im] possível entre o actual líder político chinês e a tal onda de crimes ocorridos recentemente na Suécia.

Parece já não restarem dúvidas de que se trata de crimes de motivação xenófoba que envolveram [segundo a edição de 24.10.10 do diário "Público"] um atirador furtivo que, ao que parece, percorrerá as ruas da cidade sueca de Malmö atirando indiscriminadamente sobre cidadãos estrangeiros, sendo que, sempre segundo o jornal, havia sido "referenciado 18 vezes pelas autoridades" daquele país escandinavo como estando envolvido no abate, tentado ou consumado, de estrangeiros "pertencentes a minorias étnicas" como ciganos, turcos, bósnios, croatas, sérvios e até [imagine-se!] finlandeses.

É evidente que um indivíduo [ainda que se trate de alguém que assassina ou tenta assassinar indiscriminadamente pessoas] não são todos nem sequer, talvez, a maioria dos suecos mas, se, além de termos em conta que já é possível ter-se chegado a este ponto num dos países económica e socialmente mais avançados ou, pelo menos, mais gabados da Europa, a isto juntarmos, por exemplo, o recente "caso" dos ciganos em França e, sobretudo, se dele retivermos desde logo a ideia de que quase 70% dos franceses [segundo o "Público" de 28.08.10] apoiam a iniciativa de desmantelamento dos acampamentos ciganos e que apenas um pouco menos subscreve e aprova as deportações maciças [há uma outra sondagem com valores um pouco menores apontando para 48% por cento de aprovações, ou seja, ainda assim, quase metade dos inquiridos, num país que teve Laval e, sobretudo, Pétain e que sofreu directamente, ainda não há assim tanto tempo como isso, a ocupação alemã, que teve campos de concentração em território nacional---Drancy, Beaune-La-Rolande---de onde foi expedida---deportada---parte considerável da população judia de França para os de extermínio na Alemanha]; se a isto juntarmos a tibieza de várias agências humanitárias, desde logo, das da ONU à cumplicidade "europeia" com a autocracia bielorussa que a "Europa" não se importaria nada de integrar [pensando, com certeza, muito mais no custo das matérias primas e da mão de obra local no que nos valores humanitários e especificamente democráticos...]

Se a isto juntarmos os elogios do inefável Berlusconi ao "último ditador da Europa" [como o re/classifica o "Público" de 28.08.10] o bielorruso Lukhatchenko, recebido em audiência pelo Papa...---Berlusconi que o descreve, com a grotesca incontinência verbal e mental que tão eloquentemente o caracteriza e identifica, como "amado pelo povo" [cf. Dulce Furtado, "O jogo dos equilíbrios entre Ocidente e Rússia de Lukachenko" in loc. cit.] ou, por outro, a... "despreocupada" colaboração económica com regimes como o angolano [ainda não há muito acusado de limpeza étnica em Cabinda a coberto da ajuda militar ao combate à cleptocracia zairota de Mobutu...] e o descarado namoro ao "musculado" regime chinês, teremos, com certeza [e com "bênção" papal...] uma série de indícios que podemos entender já como possivelmente consideráveis de uma preocupante imagem da duplicidade moral e política por parte de uma ordem mundial que, diria eu, não encoraja nem dá sólidas esperanças relativamente ao futuro---muito em especial a aprtir do momento em que, a tudo isto juntamos a "crise" actual e os valores verdadeiramente apocalípticos do desemprego sistémico e agravamento drástico das contradições dentro do sistema envolvendo um conjunto de disfunções profundas nascidas da "quaternarização" intensiva ou passagem consistente ao "estado gasoso" do próprio modelo económico-financeiro que tende a perder aquele que foi o seu grande argumento político para entrar na História pela porta grande: uma muito mitificada aptidão particular para "gerar" riqueza"---tende agora a gerar ou a produzir directamente lucro na forma de "gás", i.e. sem passar já pela produção dos bens que eram a base da produção deo lucro na fase "terciária" anterior.

Sintetizando: quando hoje os que lutam pela Democracia opondo-se frontalmente às forças económicas e políticas para quem a democracia só conta se aceitar negociar com elas os seus próprios limites e caderrno de encargos social e político quiserem vir a público identificar os inimigos terão inevitavelmente de fazê-lo esquecendo as velhas imagens "arqueológicas" deste, antes buscando-o no seu interior, astuciosamente confundido com o padrão mesmo do... "papel de parede institucional" do regime, os aparelhos avulsos daquilo que o sistema segue imperturbavelmente chamando "democracia" e "sistema democrático".

Existe, pois, por um lado, um capital de compreensível mas extremamente confuso, muito volátil e globalmente infixo descontentamento no seio das económica e socialmente martiririzadas populações do "Ocidente", em particular, "europeu", de hoje; depois, por outro, um conjunto de lideranças "funcionais" nacionais [muitas delas gritantemente incapazes de equilibrarem politicamente os níveis preocupantes de desemprego e pauperização global das sociedades que lideram] convergindo todas essas lideranças para uma espécie de grande conselho de administração transnacional [com muito, aliás, na sua constituição e funcionamento, de condomínio fechado e até de sociedade secreta] sedeado em Bruxelas e "democraticamente eficacíssimo" quando se trata de gerir situações de relativa prosperidade geral mas claramente incapaz de manter a mesma eficácia e a mersma serenidade institucional quando se trata, pelo contrário, de acomodar fases de desequilíbrio e mesmo de aberta pré-ruptura como está a acontecer, neste preciso momento, em países como a Irlanda [o desabamento de cuja economia a "Europa" não conseguiu mesmo ali, diante do seu sempre sapiente nariz, vir-se aproximando...] a Grécia e Portugal.

Existe ainda uma fuga para a frente clara dessas mesmas lideranças conmpletamente alheias aos perigos de desmantelamento da 'almofada de segurança', económica mas também social e política, do chamado "Estado Social", afinal, o grande dispositivo sistémico de segurança política do modo que, em meu entender, vem há muito garantindo a sobrevivência material do produção capitalista industrial e pós-industrial.

Esse projecto de desarticular disfarçadamente o Estado "Social" implica, como é evidente e inevitável, um reforço do potencial de intervenção repressora do próprio Estado uma vez que ele, projecto, não pode deixar de levantar reacções cada vez mais deternminadas e enérgicas à medida que se fiorem agravando as condições de "habitabilidade social e política" do sistema.

Tudo isto junto prefigura, a meu ver, a possibilidade de este se ver, a prazo, compelido a encontrar formas práticas, expeditas, de contenção e cada vez mais activo policiamento social e político não completamente "abertas" e por isso previsivelmente impopulares---e cá está o cerne daquela equacionação inicialmente feita envolvendo, por um lado, formas, algumas delas, já preocupantemente "callejeras" de histeria descontrolada, desnorte e "vigilantismo" declarados---ao lado de outras que, por enquanto, se vão mantendo, sobretudo, na sua forma tácita e muda, apenas potencial mas que podem, umas e outras, como aconteceu em momentos anteriores de péssima, de sinistra memória, necessitar de ser "recuperadas" e usadas pelo próprio sistema contra inimigos externos que lhes confiram sentido sistémico reconhecível, digamos assim!---e implicando, por outro, a evolução tendencial do próprio sistema para modelos objectivamente "musculados" para os quais os "exemplos" chineses [volta e meia maldisfarçamente admirados pela sua eficácia por um mundo "democrático" que nunca perdoou a excessiva complacência da democracia para com certos "pietismos" e "garantismos" sociais, no plano do emprego ou do paradigma de empregabilidade---coisas que, para ele, só atrapalham o funcionamento "eficaz" do sistema e impedem que ele opere "em pleno", "full steam ahead"....

A "bottomline" destas reflexões é, pois, para terminar:

a. ninguém deve hoje supreender-se [ninguém tem hoje o direito de se surpreender se um sistema que já impôs uma suposta União supostamente europeia venha num futuro mais ou menos próximo ver-se forçado a impor outras coisas coisas ainda e cada vez mais determinantes para a vida de cada um de nós, cidadãos da Europa de hoje; assim como,

b. em tese, poucas ou nenhuma das formas ou das fórmulas achadas pelo próprio sistema para se operacionalizar ulteriormente e tornar-se ainda mais... "expedito" [embora possa na prática aproximar-se muito daquela "reivindicação" recentemente apresentada por uma conhecida figura do nosso universo partidário, envolvendo a "suspensão estratégica e expediente" temporária da democracia] assumirá a replicação dos modelos históricos anteriores, cuja previsibilidade e evidência social e política os torna [a não ser, repito, "en cas de malheur, de très grand malheur"...] inexequíveis por demasiaso arriscados.

Pelo que é para outro lado---para dentro de nós e do mundo que nos rodeia que é preciso, a partir de agora, com particulares incidência e acuidade olhar...


[Na imagem: "Cry Wolf", colagem sobre papel impresso de Carlos Machado Acabado]

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Incompl. [texto em construção] [2]


Há uma questão muito mistificada [envolvendo aspectos que se prendem directa ou indirectamente com a matéria da "entrada" imediatamente a seguir a esta] e sobre a qual gostaria de tecer aqui algumas considerações.

A questão em causa é aquela que se prende com as diferenças de fundo entre "fascismo" e "liberalismo", supostamente dois adversários inconciliáveis ente si em matéria, quer económica, quer política quer até nesse território extremamente maleável, móvel e difuso, situado entre ambos que é o "social".

É evidente que, no plano formal, no âmbito das instituições políticas consideradas em si mesmas [como inclusive no das representações mentais e cultu(r)ais dela inevitavelmente derivadas] existem dfiferenças substanciais entre ambas as formas de gerir politicamente as sociedades.

Disso ninguém terá razões para duvidar, sobretudo se, como sucedeu com tantos de nós portugueses de hoje entre os quais me incluo, tiver idade suficiente para ter vivido sob ambos os regimes, primeiro sob o salazar-marcelismo derrubado pela revolução militar e política de '74 e em seguida no âmbito desta forma vaga política [democraticamente simbólica] de administrar a História das comunidades humanas que é aquela que conhecemos vulgarmente pelo nome de "democracia".

É comum, é verdade, em épocas de particular turbulência e insatisfação como aquela em que vivemos hoje a tendência para a perda da noção exacta das diferenças formalmente, de facto, substanciais entre ambos os regimes.

É comum essa perda de perspectiva imediata da realidade que envolve o olhar que sobre ambas lançamos assim como é comum, por trás dela, perder igualmente a noção das diferenças muito profundas que existem entre os modos de intervir cívica e politicamente sobre cada uma delas, no sentido de erradicar aquela que representa a meu ver uma aberração economica, social, política---a ditadura, o fascismo quando o há ou o houve---e de melhorar a segunda, aquela a que, muitas vezes de forma extremamente pouco crítica, pouco selectiva e, por conseguinte, genericamente pouco consistente, designamos poor "democracia".

Sobre este aspecto envolvendo aquilo que distingue o fascismo e/ou a ditadura em geral dos entendimentos mais 'liovres' ou mais 'liberais' da vida das sociedades ninguém terá, volto a dizer, dúvidas efectivas de fundo.

Essas podem surgir [de facto, surgem!] no que diz respeito àquilo que menos evidente e sobretudo menos fundamentadamente---i.e. no plano infra-estrutural---liga ambas entre si e cada uma delas à História, à Economia e à Política.

De facto, a diferença entre ambas não é como tantas vezes se dá implicitamente de barato nem algo de exterior à História concreta, designadamente económica e financeira, das sociedades onde cada uma delas surge nem ao modo essa História é concebida e "alicada" no que ela tem de mais material e concreto, digamos assim.

A diferença entre ambas não é, pois, nem algo de abstracta e descontextualmente meta-histórico nem, indo um pouco mais longe no desenvolvimento da ideia que me proponho aqui defender, algo de metafísico.

Quero eu dizer que as pessoas---a classe---que conduz a História; que tem poder para efectivamente condicionar e determinar para onde pretende que ela vá se mantêm exactamente a mesma quando de um regime se passa historicamente para outro, como sucedeu na Alemanha ou na Itália e no Japão dos anos '40 e no Portugal da década de '70, do século passado.

É, do meu ponto de vista e do das ideias que aqui pretendo apresentar, essencial que se perceba este ponto e dele se retirem as inevitáveis---determinantes---decorrências.

Ou seja: o fascismo representou a meu ver basicamente a consequência objectiva de duas realidades: a ascenção histórica da burguesia europeia ao poder no século XVIII [ao que chamo a "propriedade efectiva da História"] trazendo consigo o argumento legitimador da capacidade técnica para rentabilizar ulteriormente essa mesma História e, cumulativamente, num plano mais concreto ligado à consecução pontual, efectiva, concreta, desse projecto global burguês de rentabilizá-la [reorganizando integralmente a realidade económica e social em geral com esse propósito preciso] o de construir para ela, História, um formato institucional [e até mental] a que chamo de "capitalismo político" ou "total" que consistia basicamente na tentativa de alargar o modelo fortemente verticalizado e centralmente funcionalizado de organização fabril à sociedade no seu todo.

A ideia é a de que, se o modelo resulta, na produção deve resultar, de igual modo na política e que só se pode extrair toda a utilidade e toda a eficácia das potencialidades do conhecimento como gerador de "valor" se as questões de organização forem pontualmente submetidas a esse propósito primário condutor.

Dito de outro modo se o Social e o Político [que o operacionaliza no concreto] aceitarem submeter-se funcional e, sobretudo, totalmente ao Económico.

Se eles---a Política, desde logo---aceitarem perder a sua independência particular, específica, em favor de um objectivo histórico muito preciso que é aquele que presidira ao triunfo efectivo da burguesia, ou seja, o de rentabilizar contínua e, sobretudo, sempre ulteriormente, sempre mais, a realidade.

É este princípio que passa a iluminar todo o desenvolvimento [o "deployment"] do processo histórico e, por conseguinte, também político a partir do momento em que a burguesia consegue plasmar, de forma efectiva, nas instituições [sociais, políticas mas também mentais e, em geral, cultu(r)ais] a sua própria ideia de História---aquela que ela traz do limbo de onde foi emergindo até ganhar força bastante para, servindo-se do impulso conmplementar das classes populares, "roubar a História à aristocracia" e instalar-se nela como grande força "proprietária" e, por conseguinte, também condutora.

Esta passagem do ideal democrático [envolvendo os modelos de organização humana colectiva] a função e instrumento de um projecto maior é, em meu entender, absolutamente determinante para se perceber o que se passa hoje social, política e até civilizacionalmente à nossa violta.

É que, a partir daí, da subscrição dessa espécie de grande contrato social e civilizacional entre as clases e entre estas e a História que passa a vigorar na definição futura objectual das formas que esta há-de assumir, o papel politicamente distribuído às formas de expressão institucional onde devem encontrar-se consagradas as aspirações dos indivíduos e das sociedades por eles formadas passou claramente a ser o de "ligar ou prender" a História a si mesma", não a deixando fugir das tarefas de consecução de um projecto de natureza econonómica [e instrumentalmente técnica] que as condicionava [àquelas formas] e que elas estavam obrigadas, de facto ou de direito a viabilizar e possibilitar que, dos mais diversos modos e maneiras, se cumprisse.

Há, pois, aqui, ou a partir daqui, deste tempo e desta ideia, uma inversão [ou mesmo---por que não dizê-lo?---uma subversão!] primária e nuclear das componentes naturais [eu diria de toda a ecologia] do processo de desenvolvimento global da História humana.

De acordo com esta mudança e para utilizar uma linguagem filosófica conhecida é possível dizer-se que, à semelhança do que se passa nas formas conhecidas de cosmovisão teocrática que o processo histórico "copia" des-transcendentalizando-as e des-sacralizando-as, a essência da História precede a existência dessa mesma História, ou seja, a História para as novas formas de administrá-la e geri-la, nasce já com "o destino marcado", um destino que obriga a si todas as múltiplas modalidades de representação teórica, cultu(r)al, mental etc. que, a partir da relação dos indivíduos, com ela e, depois, dos indivíduos entre si e até consigo, se vão formando, no concreto.

Neste contexto, a Revolução [que pretende desfixar a História desse vínculo que obriga a política a mantê-la completamente imóvel e firmemente presa a si mesma, impossibilitada de transformar-se livremente]; neste contexto, dizia, a Revolução emerge, por seu turno, nessa mesma História como 'o nosso existencialismo colectivo', a nossa possibilidade de repensar e ressissignificar livremente a nossa relação com ela e connosco mesmos---algo que repele instintivamente o status quo civilizacional que, por razões óbvias, vê nisso apostasia e sacrilégio.

Quando, voltando um pouco atrás, a chamada Revolução Industrial triunfa como paradigma económico, de facto extremamente funcional no plano estrita-e-estreitamente técnico [dando expressão a esse projecto inversional de História que é suposto "torná-la rentável", sempre mais "rentável"] começa-se de imediato a pensar que, se a receita fabril funcionava no seu próprio âmbito ou espaço preciso, então, a política, dentro de uma mesma i/lógica inversional-funcional já globalmente vigente, devia aceitar funcionalizá-la reconhecendo para si um papel, na in/essência, apenas ancilarmente possibilitador e secundariamente funcionalizador.

É, pois, um passo natural aquele que leva, por um lado, da Revolução Francesa [de que sai vencedora a burguesia, a qual, utilizando o povo para ajudá-la a apear a aristocracia, tecnicamente inepta, do seu anterior lugar na... "casa das máquinas" da História, desse mesmo "povo" se livra quase de imediato, passando a ser ela a gerir e a administrar---ou a ministrar---a História sozinha] à Industrial [que é na essência a consecução do projecto de funcionalização intensiva do real com que a burguesia tinha prometido legitimar-se historicamente e que, agora, agrega a si todas as formas de organização humana que para esse projecto perdem, como disse, qualquer modalidade ou modo de autonomia própria] e, por fim, da Revolução Industrial ao Fascismo ou Capitalismo Político, Capitalismo Total, Integral, que visava "fechar a História" num grande círculo material e mental sem "saída para o exterior", se assim me posso exprimir.

E é aqui que se estabelece---que eu estabeleço---uma espécie de grande vínculo teórico de episteme entre 'fascismo' e 'democracia' [de facto, entre 'fascismo' ou 'democracia formal', "demomorfia", como prefiro designá-la---um vínculo que, admito, é, por vezes, muito difícil de ver "do exterior", digamos assim, sendo, por isso, extremamente importante---vital mesmo---que sobre tudo isto reflictamos muito séria e muito criteriosamente, como aqui, aliás, procura sempre fazer, sempre que abordarmos estas questões.

A minha tese neste ponto é que há uma verdadeira "falácia de composição" no projecto de 'capitalismo total' tentado pela grande burguesia europeia [e até americana e asiática] nos anos '20 e '30 do século passado.

Ou seja: até um dado ponto ou grau de composição, de "expansão composicional", digamos assim, a funcionalidade geral do modelo consegue ser globalmente sustentada, sobretudo, se o Estado [que, não por acaso, acaba historicamente concentrado, ele próprio, nas mãos de uma classe na forma do muito decantado Estado-nação moderno, chamado a colaborar, a partir de dada altura, verticialmente nas tarefas de funcionalização burguesa atrás descritas...] "der uma ajudinha", recolhendo as "baixas" do funcionamento natural do modelo e, como não me canso de repetir e de sublinhar, pondo toda a sociedade a recapitalizar continuamente eese mesmo modelo na forma do "Estado social" pago com os impostos de todos.

A partir desse grau ou "instante teórico" específico, o modelo deixa de se sustentar como o provaram as auto-extinções do fascismo e do nazismo que foram sociais e especificamente militares mas que não foram autonomamente militares, isto é, resultaram da própria lógica intensiva e extensivamente naturalmente concorrencial e obsessivamente funcionalizadora do modelo que passou a agregar a agressão bélica como instrumento de expansão e consolidação económica e financeira.

E é precisamente dentro desta lógica de refuncionalização contínua do mesmo que, vendo-se ameaçado pelos efeitos disruptores dinâmicas quasi-incontrolavelmente dissolutoras que desencadeou tentando fechar-se sobre si mesmo num "objecto económico-político" único, que este se vê, a partir de dado momento composicional correspondente à quase implosão militar, social e política ociorrida em 1945 forçado a "importar do exterior" formas selectas de "liberalicização funcional" que o possibilitem ulteriormente.

Que o possibilitem ulteriormente criando, para isso, como motor de decisionalidade, em lugar da compulsão anterior que marcara as formas clássicas de autoritarismo político, a ficção cultu[r]al e política da sobrevivência do modelo como resultado da acção autónoma do desejo, individual e colectivo regularmente reconfirmado em eleições.

De facto, o que nas modalidades comuns de "democracia funcional" ou "demomorfia" temos são formas ainda e sempre inversionais, politicamente ancilares, de manter a História [a variável funcionante] indissoluvelmente ligada à respectiva infra-estrutura económica e política inalterada [a "constante de referencialidade ultimativa permanente"] do sistema, através da "mediação estratégica" da "política", usada como... "cola" de todo o modelo.

E é por isso, devido a essa natureza "ancilarmente demonstrativa", "infixamente possibilitante", da 'democracia funcional' actualmente institucionaslizada no Ocidente que pessoas como eu se permitem chamar continuamente a atenção para a 'i/lógica de parentalidade estrutural', 'nuclear', digamos assim, existente entre os grandes autoritarismos históricos de meados do século XX e as formas modernas e 'pós-modernas' de organização histórica e política---de organização ou estruturação civilizacional---actualmente em vigor a que chamamos "democráticas" e que, volto a dizer, na in/essência, possuem exactamente devido ao vínculo funcional muito forte que as liga entre si, uma demonstrável "proximidade de função" com as modalidades de gestão histórica e política que as antecederam e das quais, por isso, no plano da visão crítica macro-histórica, não podem ser dissociadas e consideradas como algo de completamente independentre ou até, no limite, verdadeiramente distinto.

Não é que 'democracia' e 'ditadura' ou até 'fascismo' sejam, como muitas se diz, afinal, a "mesma coisa".

Existem, óbvia e demonstravelmente muitas diferenças na forma como se impõem às pessoas ou como são cultu[tr]almente impostas a essas mesmas pessoas.

São, pode dizer-se, historicamente diferentes.

Onde as distinções se esbatem e de forma considerável, estrutural mesmo, por tudo quanto deixo escrito, é, como disse, no plano macro-histórico.

Quando, por exemplo, no texto que imediatamente se segue, eu aproximo, para efeitos de análise, modelos económico-políticos aparentemente muito diferenciados como o estadunidense [formalmente democrático e liberal, em mais de uma das vários acepções possíveis do termo] e o brasileiro [que até por uma ditadura passou] não há, da minha perspectiva; da tal perspectiva orgânica e macro-histórica que aqui me norteia, qualquer contradição ou deformação artifical da realidade a fim de caber numa ideia prévia que se pretenda abusivamente demonstrar.

Daquela perspectiva macro-histórica, não há.

Trata-se em ambos os casos de um mesmo projecto de usar a História e a Política dentro dela como meros dispositivos demonstrativos e genérica ou implicitamente demonstraticvos---um projecto de classe cuja principal característica é, num certo sentido, o de, tendo-se por diversas vezes "funcional ou funcionantemente mutado" nunca se ter, de facto, interrompido desde que a burguesia tomou de assalto a História vai para trezentos anos...


[Imagem ilustrativa extraída, com a devida vénia, de taringa-dot-com]